A Tragédia da Rua das Flores

Exibição:
24/01/1983 – 18/04/1983 (RTP 1)

Número de episódios:
12

Realização:
Ferrão Katzenstein

Baseado no romance de:
Eça de Queiroz

Adaptado por:
Luís de Pina
Ferrão Katzenstein

Cenografia:
António Casimiro

Produção:
Luís de Freitas

Elenco:
Lourdes Norberto – Genoveva
Antonino Solmer – Vítor
António Assunção – Dâmaso
Elisa Lisboa – Miss Sarah
Márcia Breia – Mélanie
João D’Ávila – Meirinho
Orlando Costa – Camilo Serrão
Santos Manuel – Timóteo
Rui Mendes – Poeta Roma
Canto e Castro – Carvalhosa
José Peixoto – D. João da Maia
António Marques – Pedro da Ega
Carlos Rodrigues – Pianista Fonseca
Luís Alberto – Vasconcelos
Carlos Fogaça – Visconde
José C. Garcês – Advogado
Carlos Rego – Cavalheiro
Mário C. Neca – Cavalheiro
Verónica – Clorinda
Carlos Rosa – Criado do Mata
Fátima de Sousa – Negra
Carlos Costa – Rei D. Luís
Carlos César – Palma Gordo
David Silva – Dr. Caminha
Fernando Soares – Augusto
Manuel Marcelino – Sarrotini
António Anjos – Reinaldo
Luís Pinhão – Couto
João Soromenho – Oficial de Lanceiros
Teixeira Lucas – Criado de Dâmaso
Arlete Soares – Senhora do turbante
Armando Venâncio – Pascoal Pimenta
Eugénia Vasques – Pia de Tolomeu
Luísa Boleo – Mulher do Oficial de Lanceiros
Baptista Fernandes – Fournier
Natália Luiza – Joana
Manuela Queiroz – Espanhola
São José Lapa – Aninhas
L. Ferreira – Rosa
Couto Viana – Barão Markstein
João Maria Pinto – Tadeu
António Banha – Fabião
Renato Pedrosa – Prudêncio
Manuel Coelho – Rui
Carlos Fonseca – Cliente Machado
José Manuel Mendes – Procurador Gorjão
Branco Alves – Pedro da Golegã
Cunha Marques – Funcionário de Albuquerque
Maria Amélia Matta – Madalena Gordon
Madalena Braga – D. Joana Coutinho
Maria Emília Castanheira – Madame Livalli
Andrade e Silva – Vizinho
Jorge Gonçalves – Conde Valmoral
Asdrúbal Teles – Dr. Torres
João Neves – Elisiano Macedo
Amílcar Botica – Casimiro Valadares
Rui Luís – Corpulento da Havaneza
Vítor Soares – Gonçalo Cabral
Carlos Areias – Sócio
S. de Carvalho – Lacerda

Enquanto é exibida a ópera Barba Azul, de Jacques Offenbach, uma presença singular causa sensação no teatro. Trata-se de Madame de Molineux (Lourdes Norberto), uma aparente francesa que na verdade é bem portuguesa, natural da Guarda, chamada Genoveva. Depois das primeiras impressões, esta dama acaba por revelar a sua verdadeira personalidade: na verdade ela é uma cocotte, perita em viver à custa de homens ricos que a sustentem em troca de momentos de prazer.

Apesar de ser viúva de um senador francês, Genoveva não esconde que sempre se aproximou dos homens por interesse, tendo chegado a Portugal acompanhada pelo brasileiro Gomes. As suas atenções acabam por se voltar para Dâmaso (António Assunção), um homem de recursos, embora muito pouco atraente, que passa a sustentá-la.

Paralelamente, acompanhamos o percurso de Vítor Corvelo (Antonino Solmer). Abandonado pela mãe à nascença, Vítor foi educado pelo tio Timóteo (Santos Manuel), que o quis preservar de falsos moralismos, com o intuito de o tornar uma pessoa imune às fragilidades naturais de Portugal e de Lisboa, cidade que detesta e onde faz questão de viver.

E, precisamente na noite em que Genoveva vai ao teatro, Vítor fica visivelmente impressionado com a sua beleza. Mais tarde, os dois cruzam-se novamente, por intermédio de Dâmaso, sem que este perceba de imediato o interesse mútuo entre a sua protegida e o seu amigo.

Vítor e Genoveva

Ao saber que Vítor pretende ter um romance com a amante de Dâmaso, Timóteo incentiva-o, mas logo se arrepende quando o relacionamento entre os dois se torna mais sério e ele começa a descurar o seu desempenho profissional no escritório de advocacia. Timóteo, por sinal, tem uma péssima impressão de Genoveva e chega a cruzar-se com ela por mero acaso, primando-se tal encontro por alguma animosidade. Fica, porém, algum mistério no ar: a cocotte faz-lhe lembrar alguém.

Entretanto, o inevitável acaba por acontecer: após extorquir os últimos cobres a Dâmaso, Genoveva rompe com ele e impede-o de entrar na casa que ele próprio sustentava, um belo apartamento na Rua das Flores, para onde ela se havia mudado há poucos dias. Depois de se insultarem e quase chegarem a bater-se num duelo, Vítor e Dâmaso tornam-se inimigos, principalmente porque Dâmaso faz publicar em jornais notas insultuosas dirigidas quer a Vítor quer a Genoveva, afirmando que a relação amorosa entre os dois não passa de um pacto comercial.

Vítor, por seu turno, assume Genoveva, deixando de se encontrar com Aninhas (São José Lapa), uma mulher fácil com quem costumava sair, e com Joana (Natália Luísa), a empregada de Camilo (Orlando Costa), um pintor diletante e insatisfeito que tinha ficado de pintar o retrato de Genoveva.

Ao ser procurada por Timóteo, esta conta-lhe a história da sua vida para que ele a compreenda. Timóteo então percebe que Genoveva se casou com o seu irmão Pedro, vindo a ser a mãe legítima de Vítor. Desesperada por ter cometido incesto, Genoveva perde os sentidos e, mais tarde, sem conseguir contar a verdade ao seu apaixonado, suicida-se atirando-se de uma varanda do seu apartamento.

Sem nunca conhecer os motivos que a terão levado a este ato impensado, Vítor entra em depressão, mas ao fim de várias semanas consegue curar-se e reata com Joana.

Genoveva de Molineux (Lourdes Norberto)
Mulher de passado misterioso, diz a todos ser natural da Madeira, quando na verdade nasceu na Guarda. Apesar de ter enviuvado de um senador, que lhe deu o sobrenome de Molineux, vai sendo sustentada por homens endinheirados que lhe proporcionam jóias e roupas luxuosas. Ao conhecer Vítor, fica fascinada e sente que existe um elo muito forte a uni-los.

Vítor Corvelo (Antonino Solmer)
Órfão de pai, nunca chegou a conhecer a mãe, que o abandonou para fugir com um amante. Acabou por ser criado pelo tio Timóteo, a quem trata como um pai. Exerce a profissão de advogado no escritório do doutor Caminha.

Tio Timóteo (Santos Manuel)
Tio de Vítor, consta que perdeu a perna numa caça a um tigre, embora a presa da perseguição que lhe valeu o acidente fosse uma galinhola. Educou Vítor longe da influência de padres e beatas, para fazer dele uma pessoa forte. Ao encontrar-se pela primeira vez com Genoveva, tem a certeza de que já a viu em algum lado.

Pedro da Ega (António Marques)
Pai de Vítor, fica inconsolável com a partida da sua mulher, Joaquina. Antes de morrer, deixa o filho ao cuidado do irmão.

Dâmaso (António Assunção)
Homem medíocre, mas bem posicionado economicamente, aproxima-se de Genoveva e instala-a numa casa onde a visita diariamente. Apesar de desconfiar do interesse dela por Vítor, descobre a traição demasiado tarde. Expulso pela cocotte, resolve vingar-se publicando notas difamatórias nos jornais lisboetas.

Mélanie (Márcia Breia)
Criada de confiança de Genoveva e cúmplice do seu romance com Vítor, escarnece de Dâmaso a toda a hora.

Miss Sarah (Elisa Lisboa)
Governanta inglesa de Genoveva, não aprova a vida que ela leva. Sente alguma inveja da patroa, cujo motivo fica patente mais tarde, quando resolve declarar-se a Vítor e agarrá-lo à força.

Camilo Serrão (Orlando Costa)
Pintor frustrado com a vida lisboeta, confessa-se acima de tudo um entediado. Apesar de ter grandes aspirações, as suas obras nunca passam do mundo das ideias.

Joana (Natália Luiza)
Criada e concubina de Camilo, de quem tem um filho. Nutre uma paixão secreta por Vítor e acaba por consumar o seu sentimento quando ele ainda não se resolveu a assumir Genoveva.

Aninhas (São José Lapa)
Mulher fácil, foi amante de Vítor e mostra-se enciumada pelo facto de ele a abandonar para se unir a Genoveva.

Meirinho (João d’Ávila)
Homem jovial e bastante rico, é a primeira pessoa a aproximar-se de Genoveva, quando ela é vista na ópera. Oriundo de Trás-os-Montes, viveu muito tempo em Paris, sendo tido pelos seus comparsas como bon vivant muito finório.

Palma Gordo (Carlos César)
Sujeito baixote e roliço, ouve as lamentações de Dâmaso em relação a Genoveva e aconselha-o a dar-lhe uma coça.

Carvalhosa (Canto e Castro)
Deputado com algum renome, também fica visivelmente abalado com a beleza de Genoveva. É uma figura típica da sociedade lisboeta e gosta de impressionar pela sua oratória.

Poeta Roma (Rui Mendes)
Mais um diletante entediado, recita uns poemas para os amigos que o vão apreciando, à falta de melhor.

João da Maia (José Peixoto)
Republicano, fino e galante. É requisitado por Vítor para padrinho num duelo contra Dâmaso.

Sarrotini (Manuel Marcelino)
Barítono do teatro de São Carlos. Meio artista, meio charlatão, com uma pronúncia a oscilar entre o espanhol e o italiano. A sua aparência contrasta com o ar enfatuado e um pouco “bolorento” dos presentes numa soirée em casa de Genoveva.

Clorinda (Verónica)
Criada do tio Timóteo.

Dr. Caminha (David Silva)
Dono do escritório onde Vítor exerce advocacia. Procura o tio Timóteo, manifestando a sua preocupação em relação ao absentismo do jovem advogado.

Augusto (Fernando Soares)
Escrevente do escritório do Dr. Caminha.

1. (24/01/1983)
Teatro da Trindade. Representa-se Barba Azul. O segundo ato já se iniciou. O coro dos cortesãos começa a sair do palco, recuando em semicírculo. De um camarote sobre o balcão, à esquerda, vem o ranger de uma fechadura perra. Uma cadeira que é arrastada faz erguer alguns olhares. Uma sombra alta, de pé, corre os fechos de prata de uma longa e linda capa de seda negra, forrada de peles escuras. Na sua direção apontam-se e focam-se binóculos. Murmura-se, no balcão, que a figura estrangeira deve ser a princesa de Breppo, uma parente remota da Casa de Sabóia. Genoveva de Molineux é o nome daquela misteriosa dama, bela e elegante. Dois homens que se encontram no balcão ficam fascinados por ela. Um deles, Dâmaso, de bigode negro, rosto balofo, baixo e roliço, esboça um sorriso. O outro é um rapaz de 23 anos, Vítor. De braços cruzados e imóvel, fica a admirá-la…


2. (31/01/1983)
Genoveva de Molineux muda-se do Hotel Central para uma casa alugada na Rua de S. Bento. Dâmaso está apaixonadíssimo e faz-lhe todas as vontades. Uma manhã, o tio Timóteo vai a casa de um amigo que mora no mesmo prédio de Madame de Molineux; ao sair, presencia uma cena que lhe desagrada e dirige palavras ofensivas a uma mulher vestida de amazona, precisamente Genoveva de Molineux. No dia seguinte, Dâmaso pede a Vítor que o acompanhe a casa de Timóteo, para que ambos o convençam a desculpar-se perante Genoveva. Dias depois, Vítor é convidado para uma soirée em casa de Madame de Molineux, que o quer conhecer.


3. (07/02/1983)
É com alguma emoção que Vítor chega a casa de Madame de Molineux para uma espécie de soirée artística. Recitam-se versos, toca-se, e Genoveva canta, prendendo a atenção de todos com a sua voz magnífica. Vítor conversa com Genoveva, enquanto Dâmaso encontra Vítor no quarto de Madame de Molineux, conversando com esta, e faz-lhe uma cena de ciúmes, após o que abandona a festa. Passam-se alguns dias e Vítor vai visitar Genoveva, declarando-se completamente apaixonado, ao que ela opõe uma certa resistência…


4. (14/02/1983)
Vítor vai visitar o pintor Camilo Serrão, seu amigo, e conhece a mulher deste, Joana. Durante a visita, Vítor sugere a Camilo que pinte o retrato de Madame de Molineux. Genoveva, que já recebera Vítor uma vez, brinca com a paixão que o jovem mostra ter por ela, mas o coração adivinha-lhe desgraça. Como Genoveva continua a encontrar-se com Dâmaso, Vítor, num desabafo, confessa ao tio o desprezo que aquele lhe merece.


5. (21/02/1983)
Vítor está cada vez mais apaixonado, mas não se sente correspondido, pois Genoveva continua a encontrar-se com Dâmaso. É então que reata relações com uma antiga amante, Aninhas, a quem leva ao teatro. No camarote em frente, ficam Dâmaso e Genoveva. Esta demonstra sentir ciúmes e, ao chegar a casa, dispensa Dâmaso e faz confidências a Mélanie, sua criada, sobre o seu inexplicável amor por Vítor. Camilo visita Vítor e mostra-se entusiasmado com a ideia de pintar o retrato de Genoveva, prestando-se logo Vítor a correr a casa desta, a fim de lhe transmitir o convite. Aí encontra Dâmaso, mas Genoveva acede a deixar-se pintar…


6. (28/02/1983)
Vítor convida Meirinho para jantar no Hotel Central e aproveita a oportunidade para o interrogar acerca do passado de Madame de Molineux. Genoveva não consegue definir o receio que a faz afastar-se de Vítor e interpreta esse sentimento como o medo de poder vir a amá-lo demais. Dâmaso convida-a a passar duas semanas em Sintra, mas é contrafeita que acede ao convite. Nessa mesma noite, Genoveva e Dâmaso combinam mudar-se da Rua de S. Bento…


7. (07/03/1983)
Vítor pede dinheiro ao tio Timóteo e parte para Sintra, ao encontro de Damião e Genoveva, que estão hospedados no Hotel Lawrence. Genoveva sente, mais do que nunca, uma enorme atração por Vítor, e não resiste a escrever-lhe uma carta, onde lhe declara todo o seu amor e onde pede que regresse a Lisboa até que ela resolve uns “negócios” e vá ter com ele. Vítor acede, mas passam-se três semanas e Genoveva continua em Sintra. Vítor vive horas de impaciência e ciúme, e volta a visitar Aninhas. Finalmente, recebe uma carta de Genoveva, anunciando-lhe que vai voltar e pedindo-lhe que a visite na Rua das Flores.


8. (14/03/1983)
Genoveva está finalmente em Lisboa, na Rua das Flores. O amor confessado a Vítor fá-la debater-se com alguns problemas: Vítor é pobre e ela está arruinada. De momento necessita de alguém que possa sustentá-la e, se se dedicar a Vítor, não consegue ter mais ninguém. Por conseguinte, resolve não romper com Dâmaso, porque espera ainda arrancar-lhe alguns contos de réis, e trata Vítor com frieza, como que arrependida do amor que lhe manifestou. Ferido, ele quer partir para Paris com o dinheiro que o tio Timóteo promete emprestar-lhe.


9. (21/03/1983)
Vítor, enciumado, questiona a Genoveva a identidade do homem de barba que foi visto a sair de sua casa, na noite anterior. Genoveva fica furiosa com as desconfianças de Vítor, mas acaba por convidá-lo para um jantar de cerimónia em sua casa. Durante a receção, Vítor e Genoveva evitam falar-se. No final, ela livra-se de Dâmaso e passa a noite com Vítor. Dâmaso, que ficou desconfiado, procura Genoveva no dia seguinte, e Mélanie entrega-lhe uma carta de Genoveva, a romper o compromisso que os unia.


10. (04/04/1983)
Dâmaso, ainda atordoado com as humilhações a que Genoveva o submeteu, encontra Vítor na Havaneza e insulta-o. Vítor desafia Dâmaso para um duelo, desafio que lhe é transmitido através de João da Maia. Acobardado, Dâmaso não aceita debater-se com Vítor e assina uma confissão, na qual declara que tudo aconteceu porque estava embriagado. Mas Dâmaso não se dá por vencido e faz publicar um artigo pouco abonatório sobre Vítor, no qual insinua que este é sustentado por Genoveva. O tio Timóteo lê o artigo e, apesar de saber que este é tendencioso, critica o comportamento do sobrinho.


11. (11/04/1983)
Genoveva tenta convencer Vítor a partirem juntos para Paris, mas este recusa, alegando que não quer viver à custa dela, nem abandonar o tio Timóteo. Genoveva insiste, dizendo-lhe que ou ele acede ao seu desejo ou então está tudo acabado entre eles. Vítor não tem outro remédio senão concordar. Entretanto, Vítor vai à casa de Camilo Serrão, e Joana, ao vê-lo, abraça-o chorando. Genoveva entra nesse preciso momento e surpreende-os. De volta a casa, Genoveva mostra-se ofendida com tudo o que presenciou e diz-lhe que não lhe perdoa. Vítor, sem saber o que dizer, promete-lhe casamento. Uma carta anónima irá colocar o tio Timóteo ao corrente da situação, pelo que tenta dissuadir Vítor de tal casamento. Mas em vão. Então, resolve ir a casa de Genoveva…


12. (18/04/1983)
Vítor vai a casa de Madame de Molineux anunciar-lhe a visita do tio Timóteo. Genoveva prepara tudo para o receber, numa tentativa de lhe agradar. Timóteo não se opõe à ligação, mas pensa que o casamento só poderá ser prejudicial a Vítor. Durante a conversa, Genoveva faz-lhe confidências acerca do seu passado, e a tragédia consuma-se…

A Tragédia da Rua das Flores foi uma série bastante esperada, à qual a imprensa dedicou algum destaque à época da sua produção.

A expectativa era alta, até porque se baseava num romance que esteve inédito por mais de cem anos, praticamente desconhecido do grande público até ser lançado poucos anos antes da estreia. Com efeito, muito embora Eça de Queiroz tenha escrito A Tragédia entre 1877 e 1878, o livro apenas foi publicado em 1980, quando deixou de estar na posse dos herdeiros e passou a pertencer ao domínio público.

Quando se lê o romance, percebe-se que Eça não fez uma última revisão, pelo que por vezes o editor colocou entre parênteses algumas palavras que faltam no manuscrito original.

Muito se cogitou à volta da publicação tardia da obra. Se, por um lado, houve quem se afirmasse contra, por considerar que não era essa a vontade do autor, outros defenderam que Eça nunca se tinha envergonhado deste livro, antes não o trouxera a público porque o mesmo constituía um esboço do que viria a ser a sua obra-prima, Os Maias.

Com efeito, existem muitas semelhanças entre os dois romances e até personagens em comum, como Mélanie, Miss Sarah e Dâmaso – que, embora tenha um apelido diferente, continua a ser o mesmo tipo balofo e medíocre, com a mania do chique. Algumas figuras, embora não sejam exatamente as mesmas, têm traços muito próximos, como é o caso de Pedro da Ega em relação a Pedro da Maia. O tio Timóteo também não diverge muito de Afonso da Maia, e a própria Genoveva, muito embora seja mais parecida com Maria Monforte do que com Maria Eduarda, tem algo em comum com esta última, como por exemplo o alegado casamento com um brasileiro chamado Gomes. Por outro lado, se os discursos irónicos de Camilo Serrão não estão muito longe do deboche ostentado por João da Ega, o leitor ou o telespectador mais atento terá notado haver nomes de personagens d’ A Tragédia muito parecidos com nomes que conhece d’ Os Maias. Cite-se, a título de exemplo, Pedro da Ega ou João da Maia.

A Tragédia da Rua das Flores tem também a particularidade de ser um romance mais sarcástico, direto e jocoso do que Os Maias. Os entendidos adiantam que o autor terá desenvolvido melhor algumas personagens e lançado mão de uma delicadeza na linguagem que não existia no projeto original. Tal como n’ Os MaiasA Tragédia também tem no centro do enredo um drama incestuoso. No entanto, não se trata de um amor de irmão e irmã, mas de uma incursão edipiana, com mãe e filho a apaixonarem-se um pelo outro sem saberem do seu laço de parentesco. Registe-se que, n’ A Tragédia, Vítor nunca chega a conhecer a identidade de Genoveva, ao contrário do que acontece com Carlos da Maia, que, após descobrir a terrível verdade, comete o incesto a título voluntário.

O pintor Camilo, até ao capítulo VI, é chamado de Camilo Gorjão, passando a partir do VII a ter o nome de Camilo Cerrão (sic). Perto do final, aparece uma personagem com o nome de Gorjão que nada tem a ver com o pintor. Trata-se de um procurador que Carlos encontra no escritório do Dr. Caminha.

Por sua vez, Meirinho, interpretado por João D’Ávila, no romance de Eça chama-se Marinho.

O tio Timóteo, algures no início do romance, é descrito como um cavalheiro que se teria casado há muito tempo. No entanto, mais perto do fim, o narrador afirma que ele nunca se casou.

Um aspeto apontado pelos entendidos é o facto de as descrições de A Tragédia serem mais cruas do que nos restantes romances do autor. Podemos dar alguns exemplos:

No entanto, no quarto de Madame de Molineux, a do turbante vomitava. Tinham-lhe feito chá verde, mas a indigestão rebelde enfartara-se, irrompera pelas goelas, com grandes jatos. E na sala ouvia-se uma valsa que tocava o ilustre Fonseca. Sarrotini e Dâmaso valsavam.

Um dormia com a cabeça enterrada entre os braços cruzados, sobre a mesa; o outro, com um cachimbo ao canto da boca, o olhar mórbido errante e baço, estava tão bêbado que já não sustentava a cabeça, e na sua boca aparecia uma vaga espuma de baba; e o outro, um rapazola macilento de gravata vermelha, o chapéu para a nuca, os cotovelos sobre a mesa, falava baixo com a mulher, bebendo, a espaços, café por um copo.

Como fêmea de artista, é completa. E estúpida e é passiva. Come, obedece e despe-se. É um corpo às ordens. Não me importuna, não me interrompe, não me dirige a palavra: está ali. Quando necessito de fêmea, chamo a fêmea.

Da obra de Eça de Queiroz, também pelas mãos do realizador Ferrão Katzenstein, a RTP já havia realizado Os Maias, em 1979.

Para que a reconstituição histórica fosse o mais rigorosa possível, o realizador apareceu no programa Bom Dia Domingo, fazendo um apelo aos telespectadores que dispusessem de elementos da época retratada (finais do século XIX) – tais como gravuras, fotografias, jornais, revistas, cartazes, caixas de cigarros, caixas de fósforos e roupas – para que fizessem a gentileza de os emprestar à produção.

Ferrão Katzenstein

Foram também mostrados retratos do Rei D. Luís e da Rainha D. Maria Pia, na tentativa de encontrar possíveis “sósias” dos mesmos.

As gravações sofreram um considerável atraso, motivado pelo surgimento de uma questão relacionada com a escolha do processo de registo a utilizar: filme ou vídeo. Depois de alguns meses de impasse, a decisão foi tomada: o vídeo prevaleceu. Apesar disso, algumas cenas externas foram gravadas em filme.

Antonino Solmer, que deu vida ao protagonista Vítor Corvelo, apontou como dificuldade o facto de o projeto se ter arrastado por longo tempo, “prendendo-o” ao personagem durante cerca de ano e meio, situação que se acentuou ainda mais pela própria técnica da televisão, que fazia com que as gravações não seguissem uma ordem cronológica.

Apesar de não escamotear essa dificuldade, Lourdes Norberto não a considerou muito grave.

Com este trabalho, a RTP, pela primeira vez em 25 anos de vida, confecionou o seu próprio guarda-roupa. Foram cerca de 50 fatos, desenhados pela figurinista Maria Helena Reis, a partir de um primoroso trabalho de pesquisa.

O traje de Genoveva no 1.º episódio

Um pequeno destaque para a participação de Renato Pedrosa, ator brasileiro que conhecíamos da telenovela Dona Xepa e, sobretudo, de Dancin’ Days, onde se evidenciou interpretando Everaldo, o mordomo da vilã Yolanda Pratini (Joana Fomm).

Em 1982, enquanto ainda decorriam os trabalhos desta série, foi feita uma adaptação teatral de A Tragédia da Rua das Flores, protagonizada por Simone de Oliveira (Genoveva), Carlos Daniel (Vítor) e Armando Cortez (Dâmaso).

Vítor e Genoveva
Dâmaso e Genoveva

Apesar do ritmo arrastado, a série obteve um relativo sucesso, tendo sido reposta duas vezes:

– Na RTP 2, entre 07/07/1984 e 06/10/1984 (aos sábados, por volta das 21:30);

– Na RTP 1, entre 01/07/1986 e 16/09/1986 (às terças-feiras, por volta das 16:00).

Foi uma das primeiras produções a ter lugar na programação da RTP Memória, em 2004.

A série encontra-se disponível para visualização no portal RTP Arquivos.

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A Tragédia da Rua das Flores